05 Agosto 2015
Por causa de certos acontecimentos dramáticos que aconteceram em determinados lugares, estes acabaram simbolizando movimentos ou capítulos inteiros da história humana. “Gettysburg”, por exemplo, evoca imediatamente a guerra civil americana, assim como a “Praça da Paz Celestial” lembra universalmente a ideia de protesto não violento.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada pelo sítio Crux, 28-07-2015. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
De maneira semelhante, em termos de perseguição contemporânea contra os cristãos “Kandhamal” pode ser a palavra que melhor capta toda esta história.
Kandhamal é um distrito do estado indiano na região leste do país chamado Odisha (anteriormente conhecido como Orissa), onde uma onda de violência se abateu sobre a minoria cristã empobrecida em agosto de 2008. Uma série de motins liderados por radicais hindus deixou cerca de 100 mortos, milhares de feridos, 300 igrejas e 6 mil casas destruídas, além de 50 mil pessoas deslocadas, muitos tendo sido forçadas a se esconder para as florestas próximas onde outras tantas morreram de fome e de acidentes ofídicos (mordidas de cobra).
A violência foi levada a cabo por grupos não adornados com símbolos da militância de direita hindu, grupos que entoavam lemas tais como “Jai Shri Ram!” (Vitória ao deus hindu Ram) e “Jai Bajrang bali!” (tributo a outra divindade hindu). Os agressores lançaram mão de varas, forquilhas, espadas, armas de fogo, querosene, e até mesmo ácido.
O aniversário de sete anos da carnificina acontece no próximo mês.
Dificilmente o caso ocorrido em 2008 foi um incidente isolado. A violência contra os cristãos em Kandhamal continua ainda hoje, ainda que em menor escala.
Há alguns dias, houve relatos não confirmados de que dois cristãos foram mortos a tiros pela polícia local em uma região fronteiriça deste distrito, perto de uma colina onde haviam subido para tentar captar um sinal de telefone celular de forma que pudessem ligar para seus filhos, que se mudaram para um estado sulista em busca de trabalho.
O Rev. Ajaya Kumar Singh, padre que coordena o Fórum Odisha para a Ação Social, disse que esse tipo de violência é comum em um lugar onde as elites sociais são hindus de uma casta superior e onde os cristãos são, em grande parte, de classe baixa dos “intocáveis” e membros de tribos indígenas.
“Há um ódio duplo”, disse Singh. “Porque os cristãos são da casta mais baixa, eles são intocáveis, e por serem cristãos acabam vistos como antinacionais (...); são tratados pior do que os cães”.
Com certeza foi esta a história por detrás dos tumultos de 2008 que abalaram o distrito.
Tudo começou com o assassinato, em 23 de agosto de 2008, de Swami Saraswati Lakshmanananda, líder local considerado uma figura messiânica por muitos hindus das classes baixas tribais. Ainda que esteja em aberto a verdade sobre o seu assassinato, a culpa foi inicialmente colocada sobre os cristãos, o que parece plausível dado que ele havia prometido explicitamente eliminar a presença cristã na região.
Dom John Barwa, arcebispo da Arquidiocese de Cuttack-Bhubaneswar, onde se localiza o distrito de Kandhamal, disse que, em alguns casos, certos grupos tribais se convenceram a atacar os cristãos com base em mitos deliberadamente postos em circulação por hindus radicais a fim de para atiçar a violência.
Em alguns casos, disse ele, os moradores foram informados de que os cristãos forçá-los-iam a comer carne de gado, prática considerada pecado grave no hinduísmo, dado o status da vaca como um animal sagrado. Dois irmãos que ele conheceu em uma aldeia remota, informou Barwa, lhe falaram que participaram dos atos de violência porque estavam convencidos de que se, não matassem os cristãos, seriam transformados em morcegos.
Quaisquer que sejam as origens da violência, o que aconteceu aos cristãos de Kandhamal é quase inacreditável. Aqui estão seis destas histórias.
Kanaka Rekha Nayak é uma cristã dalit que assistiu o seu marido Parikhit morrer nas mãos de uma multidão enfurecida, que gritava louvores a deuses hindus. Ela e o marido se converteram ao protestantismo em uma aldeia majoritariamente hindu.
Conterrâneos de Nayak, antigos amigos e vizinhos, queimaram o seu corpo com ácido, cortaram os seus órgãos genitais e, depois, arrancaram fora seu o estômago e intestinos para usá-los pendurados no pescoço como um troféis.
Rajesh Digal, pastor pentecostal foi convidado a se retratar de sua fé. Quando recusou, foi espancado severamente. Perguntaram-lhe novamente se iria renunciar à sua fé cristã; quando disse que não, ficou enterrado em uma cova até o pescoço por dois dias. Quando pediu água, seus algozes urinaram em sua boca.
Ao recebeu mais uma chance para repudiar a sua fé, Digal declinou pela terceira vez. Nesse ponto, foi espancado até a morte com tacos, machados e paus. O seu corpo até hoje não foi encontrado.
Vejamos o caso da Irmã Meena Lalita Barwa, freira da ordem Servita que estava em Kandhamal quando ela e um padre local, o padre Thomas Chellen, foram arrastados para as ruas por agressores frenéticos que gritavam: “Matem os cristãos!”
A Irmã Barwa, sobrinha de Dom Barwa, disse que a sua blusa foi rasgada. Ela foi estuprada por um dos homens na multidão e, em seguida, colocada a caminhar seminua pelas ruas da aldeia, enquanto a multidão continuava a gritar.
A certa altura, os agressores insistiram que Chellen, o sacerdote, também a estuprasse. Ele se recusou e, como resultado, foi severamente espancado. Ambos sobreviveram à provação, e a Irmã Barwa, hoje com 37 anos, está cursando Direito para poder lutar por justiça em nome de outras vítimas de violência religiosa.
Padre Edward Sequeira é um padre que trabalhava na região há 10 anos.
Por volta do meio dia, em 25 de agosto de 2008, uma multidão enfurecida de cerca de 500 pessoas apareceu em sua residência, brandindo machados, pás, enxadas e barras de ferro. Exigiram que ele saísse para fora, gritando frases do tipo: “Matemos Jesus Cristo!”
Sequeira, membro da ordem religiosa Sociedade do Verbo Divino, foi agredido e, em seguida, jogado de volta para dentro de sua casa, a qual foi incendiada pela multidão. Sequeira se escondeu no banheiro, usando água para apagar as chamas. Enquanto rezava por ajuda, podia ouvir os gritos de Rajni Majh, jovem órfã que ele havia resgatado e que foi estuprada, sendo, depois, amarrada e queimada até a morte.
Ele acabou sendo resgatado pela polícia e levado de helicóptero para Mumbai, onde recebeu tratamento médico. Hoje, o sacerdote ainda carrega a dor da provação pela qual passou, tendo se submetido a várias cirurgias para tratar os danos causados na garganta e nos pulmões.
Dushmonth Nayak é um padre do distrito de Kandhamal que estava em Bhubenswar, a capital de Odisha, no momento em que a violência eclodiu. Em dado momento, recebeu um telefonema de sua irmã, que lhe informou que estava falando com uma faca apontada para sua garganta.
Agressores hindus, disse ela, invadiram sua casa e exigiram que renunciasse ao cristianismo, ocasião em que pediu permissão para telefonar a seu irmão em busca de aconselhamento.
“Se você viver, você vai viver com Cristo”, Nayak ter-lhe dito, “e se você morrer, você vai morrer com Cristo”.
A irmã de Nayak conseguiu escapar, e hoje ela coordena um conselho de mulheres na cidade.
Padre Mrutyunjaya Digal estava em Bhubenswar quando viu seu irmão, Pratap, na televisão direto de Kandhamal.
Pratap foi um dos oito cristãos de sua aldeia a serem forçados a participar de uma cerimônia hindu de “reconversão”, a qual envolvia ter sua cabeça raspada, beber água misturada com fezes de vaca (que é uma forma de devoção hindu para expressar reverência pelo animal) e recitar uma oração ao deus Ram.
A polícia faz que não vê
No geral, a polícia se distancia destas mobilizações violentas, raramente intervindo depois que o estrago está feito.
“A polícia estava lá quando os ataques aconteceram, e nada fizeram”, disse D. Raphael Cheenath, hoje arcebispo emérito, que à época estava no comando da Arquidiocese de Cuttack-Bhubaneswar.
“Não tenho nenhuma dúvida de que a polícia estava aliada” com os radicais hindus que instigaram os ataques, disse Cheenath.
Depois do fato, cerca de 90% dos casos movidos contra os perpetradores nunca resultou em condenação, em parte por causa da falta de proteção policial às testemunhas e, em parte, por causa de falhas nos registros das acusações. Consequentemente, a maioria das pessoas que levaram a cabo a violência ainda está à solta em suas aldeias, vivendo como homens livres, com os cristãos que sobreviveram fugindo deles diariamente.
“Fico triste que o sistema jurídico do meu país não tem sido capaz de cumprir o seu dever”, diz a Irmã Barwa, cujo estuprador ainda está foragido.
Por que os cristãos?
Embora o ódio puro e simples dos cristãos seja a principal força que nutre esta violência, ele não está sozinho. Singh, padre que coordena um fórum social na região, enumerou pelo menos seis motivos:
• Preconceito de classe: Os cristãos da região vêm das castas mais baixas, enquanto os hindus são de uma casta superior.
• Nacionalismo: Os cristãos são muitas vezes erroneamente vistos como “ocidentais”.
• Economia: Muitos hindus na região são comerciantes com um interesse em manter o abastecimento de mão de obra barata e explorável, e resistem aos ativistas cristãos que inspiram as classes mais baixas a fazerem valer os seus direitos.
• Política: Os partidos que contam com o apoio hindu querem controlar a região e sabem que espalhar propaganda política contra a minoria cristã proporciona votos.
• Cobertura midiática: Os cristãos têm pouca capacidade de se fazerem ouvir.
• Igrejas cristãs: Há muito tempo elas “têm se mantido em silêncio”, de acordo com Singh, e não conseguiram tomar medidas legais em defesa dos direitos dos cristãos.
Ainda que alguns analistas digam que as coisas melhoraram nos últimos sete anos, muitos cristãos estão longe de confirmar esta impressão.
“Há um silêncio, mas não serenidade”, disse Suranjan Nayak, ativista cristão local.
“Os extremistas ainda estão realizando reuniões às escondidas, e ainda fazem ameaças quando passam pelos cristãos nas ruas”, diz ele. “Não há paz nas aldeias mais remotas. Nós não somos livres, porque eu nunca mais confiei no meu vizinho como antes. Sempre me vem à mente que ele pode fazer alguma coisa contra mim a qualquer momento”.
Os cristãos também expressam frustração quanto ao fracasso do sistema jurídico em responsabilizar os agressores. Das 100 pessoas assassinadas em agosto de 2008, houve apenas 30 processos e apenas duas condenações.
Enquanto isso, sete cristãos amplamente considerados por seus correligionários como inocentes definham numa cela prisional pelo assassinato do swami em 2008.
Cheenath disse acreditar que as igrejas cristãs devem ser mais incisivas na defesa dos direitos das minorias.
“Quando a RSS pode dizer 30 mentiras abertamente”, disse ele, referindo-se a Rashtriya Swayamsevak Sangh, a principal organização na Índia composta por radicais hindus, “eu não vejo por que não podemos falar uma verdade de maneira franca”.
Por seu lado, a Irmã Barwa disse esperar que o aniversário da tragédia de Kandhamal, no mês que vem, seja um momento em que os indianos decidam acabar, de vez, com a violência religiosa.
“Cada pessoa neste país deve respeitar a religião e a humanidade dos demais”, disse ela. “Caso contrário, para que mesmo serviram o meu sofrimento e o sofrimento de tantas outras pessoas?”
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Distrito indiano de Kandhamal resume a história atual de perseguição contra cristãos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU